14 de fev. de 2014

Felicidade - Happiness (Todd Solondz - 1998)

Nota: 5,00/5,00.

     É sempre uma tarefa difícil falar sobre filmes ditos "polêmicos", existem muitas opiniões divergentes e as pessoas acabam ficando emocionais e exaltadas. É difícil, principalmente, porque se a história é considerada "polêmica", é porque ela certamente aborda algumas questões que provocam um certo desconforto no público..é só lembrar de Lolita (1962) ou Laranja Mecânica (1972) - ambos, curiosamente adaptados para o cinema por Stanley Kubrick!
   Happiness é exatamente isso, uma junção dos mais variados medos e questões existenciais da nossa vida moderna narcisista e solitária, conseguindo abordar um espectro muito grande das nossas respostas perante a esse mundo. É bem claro que cada personagem provém de um contexto de vida diferente, se ajustou à vida do modo como conseguiu - isso depende quase que inteiramente do contexto prévio e de como estruturamos nossa personalidade e nossas defesas - e como entra diariamente em conflito com esse lugar que ocupa no mundo, como isso afeta a grande busca pela "felicidade", essa que parece ser a grande questão do filme, como tentamos encontrá-la das mais variadas formas. Muitas vezes, de forma doentia, como é o caso de vários personagens desse filme.
   O mais interessante é que o diretor optou por adicionar um tom extra de humor negro à história, o que eu achei que se encaixou de maneira genial. A trilha sonora (música de fundo, nesse caso), lembra vagamente situações felizes, que aparentemente não combinam com os assuntos abordados, lembra algo de felicidade kitsch suburbana, onde as aparências são o nosso passaporte para uma vida social idealizada, mas por trás dessa aparente plácida perfeição, encontramos os impasses inerentes a nossa condição humana, por vezes de forma maximizada nesses casos de repressão tão grande do nosso verdadeiro "self". O cinema não é estranho a essa ideia de desconstrução dos subúrbios, podemos lembrar de "Beleza Americana (1999)", "Pecados Íntimos" (2006) ou "Foi Apenas Um Sonho (2008)".
   Sendo assim, é difícil não sentir o mínimo de empatia e interesse por certos personagens, apesar de também sermos confrontados com o seu lado mais obscuro, quase monstruoso. Somos levados de um extremo a outro; se por certas histórias sentimos empatia e uma inevitável compaixão, por outras somos tomados de surpresa pelo peso dos fatos. Certamente, o personagem que nos revela o seu lado mais chocante é o Dr. Bill Maplewood, que se revela um pedófilo e abusa de dois meninos ao longo do filme. Obviamente essas cenas ficam implícitas, mas isso já é o suficiente pra nos perturbar profundamente. A parte (ainda) mais assustadora da história do Bill acontece nas cenas de diálogo entre ele e o filho (que tem mais ou menos uns 12 anos de idade), talvez tenham sido os diálogos mais perturbadores que eu já assisti em qualquer filme na minha vida. Ficamos sempre na iminência de que algo bizarro vai acontecer entre os dois, ou melhor, já está acontecendo. Não gosto de utilizar termos como "doença", mas nesse caso o diretor quis deixar mais do que claro que o problema do Dr. Maplewood era algo contra o qual ele não podia lutar nem reprimir, nem mesmo em relação ao próprio filho, algo que certamente se encaixaria na definição de "doença".
   Um personagem pelo qual eu senti grande empatia, apesar de também ter seus pontos negativos (o que é ótimo e real), foi o Allen, interpretado pelo gordinho lindo/querido e extremamente talentoso que foi o Philip Seymour Hoffman - e não digo isso só agora, ele já era um dos meus atores prediletos, sempre fazia os papeis mais interessantes/intrigantes e o nome dele no elenco era certificado de que o filme era válido de ser assistido...um verdadeiro "character actor", como dizem por lá - Allen é um dos casos que mais me despertou compaixão (não que isso seja necessariamente bom, porque se formos analisar, a compaixão também pode ser uma forma de arrogância!), ele tem uma obsessão sexual pela sua vizinha, interpretada pela Lara Flynn Boyle (linda, maravilhosa, saudades Twin Peaks), mas nós vemos que a relação é totalmente inviável, e acho que além do tom intimista, a parte social também entra aqui. Como um homem não atraente segundo os padrões sociais, e considerado um outsider por não ter habilidades sociais específicas algum dia iria sonhar em manter (qualquer tipo de) relação com uma mulher linda e bem sucedida?
   A questão não é tão simplista assim, mas creio que é algo que podemos começar a compreender. Essa é outra questão, o filme não foi feito para todos os tipos de público, corro o risco de soar "pseudointelectual" dizendo isso, mas é a pura verdade. Todd Solondz não tinha em mente atingir um grande público contando esse tipo de história, obviamente. Aliás, ele mesmo disse "meus filmes não são para todos, especialmente não para aqueles que gostam deles", uma frase polêmica mas que faz sentido, porque a reação esperada de um filme tão controverso não é a estima, mas sim o estranhamento e o desconforto. Deixando um pouco de lado essa afirmação bombástica do diretor, creio que é necessário um mínimo de interesse em dissecar a parte mais obscura e incômoda da psique humana para apreciar um filme assim, porque do modo como eu vejo, é a mais pura realidade...claro que continua sendo uma ficção de um jeito ou de outro, o uso da música como efeito irônico nos lembra disso, mas não deixa de apresentar situações que poderiam muito bem ser reais e que nós sabemos que são reais, sendo isso o que mais nos incomoda.
   Não dá pra deixar de comentar também sobre a personagem da Jane Adams, Joy (em todos os filmes que já vi dela, ela interpretava personagens muito parecidas com essa, uma atriz ótima e muito carismática, de seu próprio jeito), que também nos desperta uma grande empatia. Happiness também funciona a nível de estereótipos, Joy é a típica "mulher que passa despercebida", não há nada nela que chame particularmente à atenção, e tem uma personalidade não muito ativa, que acaba mais aceitando as regras externas do que tentando mudá-las (não que eu pessoalmente pense isso, mas é como ela é vista por todos a seu redor). Quando ela pensa que talvez tenha encontrado alguém que goste dela realmente, um aluno seu, imigrante russo chamado "Vlad",  descobrimos que ele é um enganador, que conquista as mulheres para poder roubar objetos de suas casas...é um momento em que nos solidarizamos com a situação da Joy, aquele sentimento de "vida de merda-só reencarnando vai melhorar".
   As histórias acabam se cruzando, outro estilo de narrativa do qual eu gosto muito, lembrando Magnólia (1999) - também com Philip S. Hoffman - Crash (2005) e Short Cuts (1993). Creio que Happiness foi um filme muito feliz (trocadilho não intencional), apesar do tom pesado e dolorido, no sentido de que consegue contar as histórias dessas pessoas de uma forma genial, como poucos filmes conseguem...mostrando como cada um de nós trilha um caminho bastante tortuoso em direção à tal felicidade, e como ela pode (e é) diferente para cada um de nós.






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